O mais recente homenageado com o título de doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) é o compositor, cantor, ex-ministro da Cultura e imortal da Academia Brasileira de Letras, Gilberto Gil. A proposta de concessão do título ao artista foi aprovada por unanimidade, nesta terça-feira, 28 de março, pelos 42 conselheiros e conselheiras presentes em reunião especial do Conselho Universitário da UFSC, no Campus Universitário Trindade, em Florianópolis. Os presentes votaram a proposição, encaminhada por meio de ofício do reitor, Irineu Manoel de Souza. No processo, há uma justificativa que perpassa a trajetória de Gil e um currículo resumido do cantor, com mais de 20 páginas sobre sua vida e feitos marcantes.
A sessão especial começou por volta das 17h40 – logo após a sessão ordinária do Conselho Universitário. A relatora do processo, conselheira Thainá Castro Costa, indicou o voto favorável, pontuando que a concessão do título para Gil seria “justa e necessária”. Pouco antes das 18h, o reitor da UFSC, que preside as reuniões do Conselho Universitário, colocou em votação a matéria.
O título de doutor Honoris Causa é concedido pela UFSC “a pessoas eminentes, que não necessariamente sejam portadoras de um diploma universitário mas que se tenham destacado em determinada área (artes, ciências, filosofia, letras, promoção da paz, de causas humanitárias etc), por sua boa reputação, virtude, mérito ou ações de serviço que transcendam famílias, pessoas ou instituições”.
A UFSC tem, atualmente, 21 títulos de doutores Honoris Causa atribuídos em vida e quatro concedidos a personalidades já falecidas. O último deles, em 2021, foi destinado à memória da professora Antonieta de Barros, considerada uma das mulheres mais importantes da história de Santa Catarina e do país.
Entre os títulos atribuídos ainda em vida, está o do Prêmio Nobel de Literatura José Saramago, que recebeu a outorga em 1999 e participou das solenidades no Campus de Florianópolis, e do também escritor Salim Miguel. Além da cultura, personalidades de causas humanitárias, como Zilda Arns e Herbert José de Souza, e intelectuais, como Mario Bunge e Milton Santos, também foram reconhecidos pela instituição.
Presença da ciência em sua obra musical
No texto que justifica a concessão do título a Gilberto Gil pela UFSC, há um “conjunto de motivações”: a contribuição do artista à cultura brasileira como cantor, compositor, multi-instrumentista, produtor musical, político e escritor, além das singularidades da presença da ciência em sua obra musical.
A relação do artista com a cidade de Florianópolis, onde está localizado o campus central da UFSC, também é lembrada no documento. Na capital catarinense, Gil compôs A novidade, uma das suas músicas mais famosas.
O trecho A novidade era a guerra/ Entre o feliz poeta e o esfomeado/ Estraçalhando uma sereia bonita/ Despedaçando o sonho pra cada lado abre o documento protocolado, que também evidencia “a potência de sua lírica: a contraposição da beleza da poesia com a tragédia da nossa desigualdade”. A prisão do cantor, realizada na cidade em 1976, é abordada no documento. O episódio ocorreu quando ele estava em turnê com o grupo Doces Bárbaros.
“Durante a passagem do show Doces Bárbaros por Florianópolis, Santa Catarina, Gil e o baterista Chiquinho Azevedo são presos por porte de maconha e recolhidos à cadeia pública. Dias depois, será determinada a internação de ambos no Instituto Psiquiátrico São José, próximo a Florianópolis, de onde sairão no dia 20 para se submeterem a tratamento ambulatorial periódico no Sanatório Botafogo, no Rio”.
Na justificativa da honraria, Gil também é celebrado como um artista que sintetiza as palavras em latim expressas no brasão da UFSC: “A obra de Gilberto Gil conecta de modo único Ars et scientia, inseparáveis na divisa estampada no brasão de nossa universidade”.
O álbum Quanta, lançado no formato CD, é apresentado como um daqueles “em que a ciência e a arte se emaranham de forma direta”. O documento apresentado ao conselho ainda defende, na obra de Gil, “o interesse constante na tecnologia” e sua passagem relevante pelo Ministério da Cultura que ajudou a mudar a produção cultural brasileira através das setoriais, ferramentas em que artistas apresentavam suas próprias demandas ao poder público para tê-lo como parceiro.
Gil ainda teve destaque, segundo o texto, em diversas frentes de atuação na política e na cultura internacional, participando de eventos e fóruns que se consolidaram como marcos históricos em diferentes momentos. Por fim, a justificativa lembra que o artista recebeu distinções como “o Artista da Paz pela UNESCO em 1999 e Embaixador da FAO”, além de condecorações como “Légion d’ Honneur da França, Sweden’s Polar Music Prize, entre outros”. Gil também foi homenageado com títulos de doutor Honoris causa de duas universidades estrangeiras e um instituto federal brasileiro.
MPB, ativismo, política e “imortalidade”
Na síntese do currículo do artista apreciado e aprovado pelo Conselho Universitário da UFSC, a trajetória de Gil é marcada pelo ano de 1963, em que lança seu primeiro disco. Antes, entretanto, já escrevia poemas metrificados, com influência de poetas como Castro Alves e Olavo Bilac.
Um ano mais tarde, formaria com Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gal Costa (ainda Maria da Graça, a época) e Tom Zé o show Nós, por exemplo, que inaugurou o Teatro Vila Velha, de Salvador. Depois, Gil ainda se formaria na faculdade de Administração de Empresas e atuaria na Gessy Lever.
O ano de 1968 seria outro marco na carreira do artista, com seu disco tropicalista e com o movimento Tropicália. Em 27 de dezembro, foi preso com base no Ato Institucional número 5, um dos principais instrumentos de repressão do regime militar. Depois disso, ficou confinado no país e exilado em Londres, onde acumulou influências. Em 1972, retornou ao Brasil e em 1976 seria preso em Florianópolis.
Gil passou as décadas de 1970 e 1980 exercendo influência sobre os mais variados movimentos da cultura brasileira, com inúmeros episódios que o consolidam também como referência mundial na arte – espetáculos pela Europa e Israel e um período de produção nos Estados Unidos, por exemplo.
Em 1988, Gil foi pré-candidato a prefeito de Salvador, mas não teve o nome aprovado pelo partido e acabou se elegendo o vereador mais votado da cidade. Atuou como presidente da Comissão de Defesa do Meio Ambiente, integrou os conselhos consultivos da Fundação Mata Virgem e da Fundação Alerta Brasil Pantanal e presidiu o Centro de Referência Negro-Mestiça. O artista também viria, anos depois, a atuar politicamente no governo Fernando Henrique Cardoso: foi integrante do conselho do projeto social Comunidade Solidária.
Na década de 2000, foi agraciado com uma série de prêmios internacionais por sua produção artística. Em 2002, voltou à política como ministro da Cultura no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, quando promoveu uma reforma estrutural e atuou na formulação de políticas culturais e de fomento. Também lançou um documento com “bases para uma política nacional de museus”, além de inúmeras outras ações de destaque.
Nos seus anos mais recentes, o artista seguiu ganhando prêmios e reconhecimentos pela sua trajetória, além de liderar diversas turnês pelo Brasil e pelo mundo. Em novembro de 2021, foi eleito imortal pela Academia Brasileira de Letras (ABL) para ocupar a cadeira de número 20, sendo empossado em abril de 2022, com um posterior relançamento da obra Gilberto Gil – Todas as letras, que consolida sua produção artística.
No último domingo, 26 de março, o artista, com 82 anos de idade e 64 anos de carreira, recebeu das mãos da vice-reitora da UFSC, em Florianópolis, um documento indicando a proposição do título. O artista se apresentou em evento comemorativo aos 350 anos da Capital de Santa Catarina, onde foi aclamado pelo público como cidadão do mundo.