Um estudo realizado por cientistas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) mostra de forma inédita o potencial para um novo tipo de uso de um medicamento já conhecido. O furoato de mometasona é um anti-inflamatório da classe dos corticoides, muito utilizado para o tratamento de doenças respiratórias, como rinite e asma, e problemas na pele, como dermatites – sempre com aplicação local, em forma de sprays nasais, cremes ou pomadas. Pela primeira vez, contudo, pesquisadores demonstraram a possibilidade de seu uso por via oral ou por injeção, de forma que seja absorvido pelo intestino e se espalhe pelo corpo.
Realizados em células e animais, os estudos indicam que ele pode ser uma boa opção para o tratamento de inflamações intestinais, por exemplo, apresentando os mesmos benefícios e menos efeitos colaterais que outros corticoides. O trabalho envolveu também o uso de nanotecnologia e teve seus resultados publicados em dois artigos, nas revistas internacionais Biochemical Pharmacology e Drug Delivery and Translational Research.
Ação anti-inflamatória X efeitos colaterais
Antes de falar sobre os detalhes da pesquisa, é preciso explicar que os corticoides são medicamentos bastante usados para tratamento de inflamações, alergias, em contextos de imunossupressão e após transplantes, por exemplo. São fármacos bem consolidados e seguros, quando seguidas as recomendações médicas. O problema é que, quando usados por muito tempo, ou em doses elevadas, eles causam uma série de efeitos colaterais, podendo levar até ao diabetes e a dislipidemias (distúrbios relacionados ao aumento de gordura no sangue, incluindo a elevação do colesterol e de triglicerídeos). Em alguns casos, os problemas são irreversíveis.
“A gente trabalha com esses corticoides há anos. Eu trabalho com isso faz 20 anos. Basicamente, a gente tenta estudar em animais de laboratório o que acontece do ponto de vista metabólico, lá no pâncreas, mimetizando a exposição de uma pessoa a altas doses ou por um tempo prolongado a esse corticoide. O que dá para dizer é que seria idealmente interessante alguém encontrar uma molécula que produzisse os efeitos esperados do corticoide, que é a ação anti-inflamatória, sem os efeitos colaterais, ou com menos efeitos colaterais. E para isso, obviamente, tem vários grupos que tentam buscar moléculas que promovam essa ação”, comenta Alex Rafacho, professor do Departamento de Ciências Fisiológicas da UFSC e coordenador do Laboratório de Investigação de Doenças Crônicas (Lidoc) e do estudo.
Em 2015, uma pesquisa holandesa mostrou que o furoato de mometasona podia ser exatamente o que o grupo de Alex procurava – um corticoide com ação anti-inflamatória e com menos efeitos colaterais. O problema é que esse medicamento é conhecido por sua baixa biodisponibilidade. Isso significa que, apesar de ter boa ação local (como para aliviar problemas respiratórios após usar o spray no nariz ou tratar alergias na pele com cremes ou pomadas), ele tem dificuldade em chegar na corrente sanguínea. Isso porque essa é uma molécula que não se dilui em água – e nosso corpo tem muita água.
“O furoato de mometasona é lipossolúvel, o que significa que é hidrofóbico. Lipossolúvel é uma molécula que tem interação com meio lipídico [composto por moléculas de gordura] e não interage com água, igual ao óleo e a água, que ficam separadinhos. Então, ela é hidrofóbica. Não tem, digamos, interação com o meio aquoso, por isso não fica biodisponível no trato intestinal. E aí, o que acontece é que, como essa é uma molécula de pouca solubilidade, para a gente seria muito difícil administrá-la por uma via sistêmica [que possibilita que o fármaco se espalhe pelo corpo], que é algo que a gente gostaria de fazer”, conta Alex. Foi preciso, portanto, encontrar meios de torná-la mais biodisponível.
Estudos com animais
Para contornar o problema, e permitir que a molécula chegasse ao intestino dos ratos durante o estudo, os pesquisadores diluíram o medicamento em óleo de milho. Para os testes, os cientistas induziram dois tipos de inflamação nos animais – uma de curta duração, na região abdominal, chamada peritonite, e outra de mais longa duração, no intestino grosso, chamada de colite.
Os ratos foram divididos em grupos, de acordo com o tratamento que receberiam. Em alguns, foi aplicado o furoato de mometasona; outros receberam a dexametasona, outro medicamento da classe dos corticoides, mas este já é amplamente conhecido e utilizado para aplicações por vias sistêmicas para os mais variados tipos de inflamações.
Cada grupo recebeu o medicamento de maneiras diferentes: oralmente, por injeção subcutânea (sob a pele) ou por injeção intraperitoneal (diretamente no abdômen do animal. Não se faz esse tipo de aplicação em humanos, mas seus resultados podem ser comparados aos de injeções intravenosas, aquelas que são aplicadas na veia do paciente). Também foram estabelecidos grupos controle, que receberam apenas um placebo: o óleo de milho.
Os cientistas observaram que, tanto pela via oral quanto pela intraperitoneal, o furoato de mometasona foi tão eficiente quanto a dexametasona para combater a inflamação de curta duração e até melhor que a dexametasona para atenuar a inflamação intestinal mais longa. Após demonstrar que o medicamento pode funcionar por aplicação por via sistêmica, os cientistas partiram para os estudos sobre os efeitos colaterais.
Nessa etapa, os animais receberam os corticoides pelas vias oral e intraperitoneal – as duas que apresentaram boa ação anti-inflamatória –, por seis dias seguidos, o que, em humanos, seria equivalente a um tratamento prolongado de várias semanas. Esse período é o suficiente para a dexametasona causar o aumento de triglicerídeos (um tipo de gordura presente no sangue que, em excesso, pode causar complicações de saúde) e um quadro de pré-diabetes, uma condição de intolerância à glicose e resistência à insulina. O pré-diabetes é caracterizado pelo nível de açúcar (glicose) elevado no sangue, mas ainda não o suficiente para ser classificado como diabetes, apesar de indicar uma propensão ao desenvolvimento da doença. Esses problemas são bastante observados entre pessoas que fazem uso prolongado dos corticoides sistêmicos, como a prednisolona e a dexametasona.
Os mesmos efeitos colaterais foram observados em ratos machos que receberam o furoato de mometasona pela via intraperitoneal. No entanto, nenhuma das fêmeas tratadas com o furoato de mometasona desenvolveu uma situação equivalente ao pré-diabetes ou aumento dos triglicerídeos, nem os machos que receberam o medicamento pela via oral.
Alex explica que as fêmeas tiveram menos efeitos adversos por uma provável ação protetora do hormônio estradiol, presente em pouca quantidade nos machos. “Isso já é bem demonstrado. Em algumas situações, as fêmeas são mais protegidas de alguns insultos que são impostos, e o contrário também é verdadeiro, dependendo desse insulto.”
Mas vale ressaltar que, mesmo entre os machos da via intraperitoneal, todos os efeitos indesejáveis foram revertidos após dez dias sem o furoato de mometasona. Os cientistas alertam, no entanto, que os resultados devem ser interpretados com cautela, já que tratamentos mais longos, doses mais altas ou doenças prévias podem fazer com que os efeitos colaterais persistam por mais tempo.
“Esse primeiro trabalho passou a dar uma relevância para uma droga que não era vista, até então, como uma alternativa de uso sistêmico”, afirma Alex. “Só tem um probleminha aí. Como a gente entregou pela via oral nos ratos? A gente diluiu essa droga em óleo. Como ela é lipossolúvel, não dá para colocar no meio aquoso, então a gente entregava ela emulsificada, misturada com óleo de milho. (…) E normalmente as pessoas não tomariam [um medicamento] por meio de um óleo”, complementa.
Nanotecnologia
Para resolver esse problema, os pesquisadores desenvolveram nanopartículas – cápsulas minúsculas, cerca de mil vezes menores que um fio de cabelo, feitas à base de proteína de milho e capazes de resistir aos ácidos do estômago e às enzimas intestinais para entregar o medicamento no intestino do paciente. Os resultados dos estudos em células são promissores e indicam que a nanopartícula pode ser utilizada mesmo com moléculas lipossolúveis e que, uma vez que ela chegue ao intestino, pode se aderir ao local, e ir liberando aos poucos o medicamento para a corrente sanguínea.
“A gente teria uma ferramenta para trabalhar uma colite, com uma nanopartícula entregando o corticoide naquele contexto intestinal. E ali, ele pode ficar por mais tempo para desempenhar a sua ação anti-inflamatória de uma forma equivalente ao que se espera numa aplicação tópica [na pele] ou inalatória, só que agora lá no intestino”, resume Alex.
Essa etapa da pesquisa contou com a parceria de pesquisadores da Universidade do Porto, de Portugal. Como o grupo não dispõe dos equipamentos e a infraestrutura necessária para a produção das nanopartículas, agora, busca por parcerias para poder realizar os testes com animais e dar continuidade ao projeto.
Todo o trabalho com o furoato de mometasona fez parte da pesquisa de doutorado de Priscila Laiz Zimath, realizada no Programa de Pós-Graduação em Farmacologia da UFSC e na Universidade do Porto. O estudo durou cerca de cinco anos. “Eu diria que foi o trabalho mais longevo e mais complexo do grupo”, destaca Alex.
“Se a gente tivesse condições de levar esse estudo para um contexto clínico [com pacientes humanos], seria, no mínimo, um potencial meio terapêutico para colites ou inflamações intestinais, como intestino irritável, algumas intolerâncias, enfim. E, potencialmente, pela via oral, estaria chegando alguma coisa na circulação que também promoveria alguma ação anti-inflamatória mais sistêmica, com menos efeito colateral”, acrescenta o professor.